Curadoria:
Da casa ao Museu: A formação do Museu Casa de Benjamin Constant
Os “museus-casa” são aquelas residências que por seu interesse histórico ou pela importância de seus donos foram preservadas como registros de sua época. O Museu Casa de Benjamin Constant é um típico exemplo, concebido com a missão de preservar o ambiente familiar e o contexto sociocultural em que viveu Benjamin Constant. Como um lugar de memória, permite ao visitante uma sensação de viagem no tempo e uma reflexão sobre o processo histórico da passagem do Império à República. Mas como chegamos até aqui? Como se constituiu o Museu Casa de Benjamin Constant? Quantas marcas o tempo deixou nas paredes, objetos e documentos desta casa histórica?
A casa antes de Benjamin Constant
Em estilo neoclássico, com caramanchão e coreto em um parque de árvores frutíferas e ornamentais, a casa foi construída por Antonio Moreira dos Santos Costa, seu proprietário, em torno de 1860. Antonio era também dono de outros terrenos vizinhos ao museu, com destaque para a propriedade que hoje abriga a oficina dos bondes do bairro, vendida ainda no século XIX para a Companhia Ferro-Carril de Santa Teresa.
A propriedade é uma chácara, o que significa a existência de uma ampla área verde em plena cidade. Muito frequentes no século XIX, as chácaras situavam-se em torno do núcleo urbano e em seu terreno poderiam existir senzala, jardim, horta, pomar, chiqueiro, estrebaria e cocheira, além da casa principal. Contando com abastecimento próprio de água, eram mais confortáveis que os sobrados e por isso preferidas pelas classes mais abastadas. A casa de Benjamin Constant, construída em “U”, forma um pátio interno, para o qual dão várias portas e janelas verticais, como ocorre também nas fachadas que dão para os jardins. A profusão de janelas envidraçadas favorece a ventilação e o aproveitamento da luz natural.
A residência dos Botelho de Magalhães
Antes de alugar a casa de Santa Teresa, Benjamin Constant e a família moravam nas dependências do Instituto dos Meninos Cegos, escola para pessoas com deficiência visual dirigida por Benjamin. Quando passou a integrar o Governo Provisório da República, primeiro como Ministro da Guerra e depois como Ministro da Instrução Pública, Benjamin deixou a direção da escola e buscou outra residência. O jardim e a vista da Baía de Guanabara, bem como os telhados do velho casario abaixo, fascinaram-no. Benjamin teria decidido alugar o imóvel sem mesmo visitá-lo por dentro: “fico com esta!” Isso ocorreu em princípios de 1890, poucos meses depois da Proclamação da República. Uma vez alugada a casa, a família residiria nela até 1958, quando o imóvel foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Medalha de 1891 com inscrição “Á memória do Immortal Benjamin Constant Patriarcha da República”
Placa comemorativa
A casa do Fundador da República
Com o falecimento de Benjamin Constant em janeiro de 1891, a casa passou ao usufruto da viúva Maria Joaquina e dos filhos do casal, que não tinham condições financeiras de mantê-la. Ainda que as chácaras fossem ocupadas em sua maioria por gente abastada, a família de Benjamin Constant era de classe média, mantida por um professor recém-falecido. Assim, o Governo da República resolveu comprar a propriedade, pagando 100 contos de réis ao proprietário Antônio Moreira dos Santos Costa e a transformou em bem nacional. A transação foi feita em cumprimento do artigo 8º das disposições transitórias da Constituição de 1891, a primeira da era republicana, mas necessitou ainda do decreto legislativo nº6 de 29 de agosto de 1891, que autorizou a compra.
Além do objetivo prático de garantir o bem-estar da família enlutada, a compra da casa do Fundador da República, também representou um esforço para a construção de uma memória nacional republicana, valorizando o regime nascente.
O título de Fundador da República, outorgado a Benjamin pelo Congresso Nacional, dois dias após seu falecimento, coroou o que o historiador Renato Lemos chamou de entronização de Benjamin no panteão de heróis nacionais. Além do título atribuído ao patrono, a Carta também previu o destino da última residência do homenageado.
“TO Governo federal adquirirá para a Nação a casa em que faleceu o Doutor Benjamin Constant Botelho de Magalhães e nela mandará colocar uma lápide em homenagem à memória do grande patriota – o fundador da República”
(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, Disposições Transitórias, Artigo 8º, 24 de fevereiro de 1891)
“Art. 2° A familia do grande patriota será desde logo indemnizada das despesas por ella feitas coma locação dessa casa desde 24 de fevereiro último até ao dia em que for satisfeito o disposto no citado art.8°.”
(Decreto assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca em 29 de agosto de 1891)
Trabalhos de memória: história
“… as primeiras impressões estão ainda gravadas como no granito, e nada há de admirar por ser [essa] a massa de meu cérebro”.
(Benjamin Fraenkel. Carta a Hercília Vianna. Sem data. Fundo MCBC. Museu Casa de Benjamin Constant/Ibram/Minc)
É comum que um museu casa cultive o nome e a memória de uma personalidade, mas ele nunca diz respeito a apenas uma pessoa. Uma casa quase sempre abriga uma família e é um espaço de sociabilidades plurais. De fato, a casa de Benjamin Constant foi uma casa de muitas pessoas. Algumas dessas figuras foram essenciais para a formação do que somos hoje.
Maria Joaquina Botelho de Magalhães, matriarca da família, carinhosamente apelidada de “primeira curadora do Museu”, esforçou-se para imortalizar a memória do marido, guardando documentos, utensílios e outros objetos que hoje compõe o acervo arquivístico e museológico da casa. Segundo alguns registros, Maria Joaquina tinha o hábito de “interditar” com fitas pretas alguns móveis do falecido Fundador da República, para que sobrinhos e netos não os danificassem ou ocupassem o lugar do marido “desaparecido”. Era uma forma de manter viva e memória do morto, e lembra uma das máximas de Augusto Comte, pai do Positivismo, doutrina seguida por Benjamin Constant: “Os vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos. Tal é a lei fundamental da ordem humana.” (COMTE, p. 117-318)
Já Pery Constant Bevilaqua, neto de Benjamin, além de solicitar ao SPHAN o tombamento do imóvel em 1958, reuniu, cuidou e doou boa parte dos bens da família, hoje integrados ao acervo. Seu filho, Afonso Bevilaqua, foi o responsável pelas últimas doações ao museu.
Por fim, temos a participação crucial de Benjamin Fraenkel, outro neto do patrono. Ele havia frequentado a casa quando criança, e nos anos 1970, já bem idoso, registrou as memórias das vivências através de cartas e desenhos enviados à museóloga Hercília Canosa Viana, nossa primeira diretora. Certa vez, Benjamin Fraenkel disse que sua memória era feita de granito onde foram lavradas diversas lembranças. Elas foram usadas como referências para a ambientação da casa, tal como dela se lembrava um de seus frequentadores.
“Nesse [quarto], que tinha as letras A.M.S.C., ouvi meu Tio Marciano dizer que significavam Aqui Morou Sublime Conspirador”
(Carta de Benjamin Fraenkel a Hercília Vianna, 12/2/1975. Fundo MCBC. Museu Casa de Benjamin Constant/Ibram/Minc)
Abordando também curiosidades sobre a família, Fraenkel narra a ressignificação da inscrição “AMSC” que podemos ver no gradil de uma das pequenas sacadas laterais. Originalmente, as letras correspondiam às iniciais de Antonio Moreira dos Santos Costa – primeiro proprietário da casa. Mas a projeção alcançada por Benjamin depois da Proclamação da República, com a valorização da sua casa como lugar de memória, produziu uma nova versão da história. Foi assim que Marciano Botelho de Magalhães, irmão de Benjamin Constant, contou ao jovem sobrinho que aquelas letras codificavam uma frase bem mais interessante e misteriosa: “Aqui Morou Sublime Conspirador”.
Esquerda: Desenho da geladeira feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Geladeira
Esquerda: Desenho do ferro de passar feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Ferro de passar
Esquerda: Desenho da arandela feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Arandela
Esquerda: Desenho do lavatório feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Lavatório
Esquerda: Desenho do filtro d`água feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Filtro d`água
Esquerda: Desenho do bidê feito por Benjamin Fraenkel
Direita: Bidê
Tombamento como patrimônio nacional:
A Primeira Casa da República vira museu
A patrimonialização veio em 1958, quando o General Pery Constant Beviláqua, neto de Benjamin Constant, solicitou ao SPHAN – Serviço Patrimônio Histórico Artístico Nacional – uma intervenção no imóvel, que se encontrava em ruínas. Após estudos, a casa foi tombada como patrimônio histórico nacional, com um parecer favorável de Carlos Drummond de Andrade, então Chefe da Seção de História da Divisão de Estudos e Tombamento do órgão federal. Vale registrar que Drummond menciona o projeto do deputado Demétrio Ribeiro, que propunha a conversão da casa em museu ainda no século XIX. Além disso, cita o artigo 8° das Disposições Transitórias da Constituição de 1891. Para ele, seria desnecessária a pesquisa e justificativa para o tombamento, já que a historicidade da casa fora estabelecida pela Carta Magna.
Sugestivamente, a morte de Benjamin – sua passagem da dimensão física para a mítica – marca o imóvel: o objeto do tombamento é chamado de “casa onde faleceu Benjamin Constant”, como se a passagem do morador de vivente a mito resultasse também na passagem da casa de residência a patrimônio. Portanto, ainda que apenas inaugurado em 1982 como museu aberto ao público, podemos observar a permanência desse ideal de memória desde fins do século XIX e ao longo do século XX. É por esse enraizamento no Oitocentos que usamos a expressão “a primeira casa da República”.
Após o tombamento, o SPHAN recomeça o trabalho de organização do Museu. A reconstituição do ambiente familiar e do contexto sociocultural em que viveu o “Fundador da República” tornam-se a base para a formação da proposta museológica.
Além da casa histórica, o Museu também possui em seu terreno uma edificação anexa, onde, originalmente, tudo indica ter sido uma cocheira, ou casa de serviçais. Quando a filha Bernardina se casou, por volta de 1905, essa casa anexa foi reformada e ampliada para que pudesse acolher melhor o casal. Atualmente, a casa anexa abriga a sede administrativa do museu, com os setores técnicos, além do Arquivo Histórico e Biblioteca.
O Plano Inclinado
Para além dos muros do Museu, partindo da estação na Rua do Riachuelo, o Plano Inclinado da Empresa de Carris de Ferro de Santa Teresa, movido por tração a vapor, foi inaugurado em 1877. O bonde subia pela Ladeira do Castro e tinha sua estação terminal ao lado da residência de Benjamin Constant. O muro presente na imagem é um vestígio da fundação de pedra que servia de apoio ao viaduto de ferro do plano inclinado. O carril era puxado por cabos movidos por uma máquina a vapor.
“quando o bondinho chegava ao ponto terminal o condutor abria porta por porta e os passageiros saiam para tomar o bonde elétrico. Os que não tomavam o elétrico, quase todos se dirigiam à casa do meu avô”
(Benjamin Fraenkel, neto de Benjamin Constant, 1974)
Um espaço em constante transformação
O patrimônio, para além da importância que recebe em função da sua historicidade, também sofre transformações interessantes ao longo da sua trajetória. Ao entrarmos num espaço museológico, nos deparamos com tempos sobrepostos. Visualizamos o passado e, com olhos atentos, notamos as marcas do tempo presente.
A casa de Benjamin Constant, por exemplo, passou por duas grandes intervenções, em 1906 e 1936, feitas pela própria família, adequando melhor seus espaços para a vida no século XX. No ano de 1958, por ocasião do tombamento do imóvel, o SPHAN fez diversas obras para recuperar parte da planta original da residência. A fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA) fez a reconstituição paisagística para a inauguração do museu em 1982, plantando mil árvores no terreno.
De 1987 a 1991, houve nova restauração da casa histórica, incluindo reforma geral do telhado, substituição de vigas de sustentação e do piso em madeira, e revisão elétrica. As últimas obras realizadas ocorreram no período de 2017 até a reabertura em 2023, como resultado de uma ação civil-pública de acessibilidade. Nela, foram restaurados ambos os prédios – Casa Histórica e Casa da Bernardina – em suas partes arquitetônicas, construídas rampas metálicas de acesso a parte inferior do jardim, nivelamento da alameda principal, construção de vaga de veículos PNE, modernização da rede elétrica e sistema de reutilização de águas fluviais, além da construção do salão multiuso, sala de pesquisa, laboratório e reserva técnica.
As obras estabelecidas no decorrer do tempo, visando adaptar a casa para a família, ou possuindo objetivos museológicos, não removem a importância histórica do museu, anulando seu passado, pelo contrário, elas colaboram com a complexidade de sua configuração. Entendendo que o patrimônio não é um espaço imutável e sim, historicamente construído através de escolhas, acessamos uma visão crítica, capaz de acessar outras temporalidades para além das necessariamente expostas.
Lugares que nos atravessam
Instituto Benjamin Constant
O Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi fundado em 1854 a partir do diálogo entre D.Pedro II e José Álvares de Azevedo, um professor com deficiência visual que introduziu o método Braille na educação brasileira. O Instituto originalmente se localizava na Rua do Lazareto, nº 3, do bairro da Gamboa. Dez anos depois, foi transferido para o número 17 da Praça da Aclamação, no atual Campo de Santana.
Benjamin Constant começou sua trajetória na escola em 1862, como professor de matemática e ciências naturais. Com o falecimento do então diretor e seu sogro, Cláudio Luiz da Costa, Benjamin assume a direção do instituto em 1869. Para atender à demanda crescente de alunos, foi idealizada e construída a sede atual, na Praia Vermelha, inaugurada já na República, em 1891. O Decreto n° 1.320, de 24 de janeiro de 1891, mudou o nome da instituição para Instituto Benjamin Constant.
Av. Pasteur, 368 – Urca
Igreja Positivista – Rua Benjamin Constant
Benjamin fundou, com alguns amigos, a primeira associação positivista no Brasil, em 1876, batizada oficialmente de Sociedade Positivista do Rio de Janeiro em 1878. Com a crescente institucionalização da organização e com laços cada vez mais fortes com o movimento positivista francês, a Sociedade se tornou Centro Positivista, transformando-se, enfim, em Igreja Positivista do Brasil, aderindo de uma vez por todas à última fase filosófica de Comte, em que concebeu a Religião da Humanidade.
A Igreja Positivista do Brasil foi o maior expoente do positivismo institucionalizado no Brasil, além de ter sido a única igreja no mundo efetivamente erguida segundo as orientações de Augusto Comte. A pedra fundamental do Templo da Humanidade foi lançada em 1891, poucos meses depois do falecimento do Fundador da República. O prédio foi inaugurado em 1897, no nº 74 da rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, Rio de Janeiro.
Rua Benjamin Constant, 74 – Glória
Monumento a Benjamin Constant – Campo de Santana
A obra foi inaugurada em 1926, após mais de 30 anos de idealização e uma campanha para levantar fundos para a obra, feita pelos positivistas que militavam pela consagração da memória de Benjamin na história nacional. A composição, idealizada pelo vice-diretor da Igreja Positivista do Brasil – Teixeira Mendes – conta com a autoria de vários artistas como Décio Vilares, Eduardo Sá e Vicente Ornelas. Nela, além de diversas simbologias ligadas ao Positivismo, à Revolução Francesa e ao movimento republicano brasileiro, vemos em destaque Maria Joaquina Botelho de Magalhães cobrindo seu marido, Benjamin Constant, com a bandeira do Brasil.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Campo_de_Santana_-_Monumento_ao_Benjamin_Constant.JPG
Referências
Bibliográficas
COMTE, Auguste. Catecismo positivista. In: GIANOTTI, José Arthur (Org.). Auguste Comte: Os pensadores (coleção). Tradução: José Arthur Giannotti, Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 117-318.
Créditos
Assina esta curadoria: Manuela Santiago Storino
Supervisão: Marcos de Brum Lopes